domingo, 16 de janeiro de 2011

Conto #1: Uma vela para Saulo.


Sua biblioteca não impressiona.É pequeno o número de exemplares.Boa parte são aquisições de sebos e a outra... Bem, a outra, são resultados de pequenos furtos.
Essa idéia de afanar livros de livrarias, bancas de revistas, bibliotecas públicas ou privada nunca lhe provocou remorso algum, e na verdade proporcionaram até certo contentamento. Ele acha que quem não pode comprar um livro deve subtrair.
Todas as tardes é fácil encontrá-lo sentado em sua calçada devorando algum novo volume. Seu prazer é inconfundível. Quando a noite se aproxima retira os óculos, fecha o livro, recolhe a cadeira.
Vez ou outra se queixa da escuridão. Não do breu de sua casa pela ausência de energia elétrica,pois neste mês não tinha pagado a conta, mas de sua visão que aos poucos lhe abandonava. O olho direito está cego. O esquerdo já está falhando. O oftalmologista adiantou que não demoraria muito tempo para que toda sua visão estivesse perdida devido a gravidade do caso. Coisa de hereditariedade não tem como evitar, apenas se resigna.
Ao deitar-se folheia o livro de cabeceira, cochila, e vencido pelo sono, adormece. Depois da aposentadoria por tempo de serviço no magistério quase nada restou da sua antiga rotina, apenas o cotidiano solitário. A mãe já não existe. O pai nunca foi presente. Os irmãos sempre distantes, longínquos... Esquecidos.
Numa destas noites, abraçado ao um dos livros do João Cabral de Melo Neto em sua cama, a vela, fiel companheira das leituras noturnas, tombou do lado e se apagou. Ele continuou parado, olhando para o nada concentrado nas trevas do seu quarto. E assim permaneceu bom tempo, como se fosse um exercício pra cegueira iminente: “Eu não vou suportar” _ deixou escapar pela fresta dos lábios o receio.
No dia seguinte ao se levantar o quarto permanecia no escuro. Numa escuridão aterradora, tão nefasta de um modo que sua segurança ficou abalada. Tateando, buscou encontrar a porta. A porta parecia que não mais existia. Onde estava a escrivaninha com os livros? Os chinelos, o calção, seu armário, os óculos, o livro da noite anterior, onde estavam?
Apavorado, procurou a parede para se encostar e tentar decifrar o enigma do sumiço das mãos. Por que podia somente senti-las?
Então, Saulo chorou.Mas suas lágrimas não lhes trouxeram de volta a visão.
E lá ficou ele, diante do abismo frio e inexorável das vicissitudes da vida. Vendo tudo e não enxergando mais nada.

Um comentário:

  1. O Saulo é um doce transgressor. Nobre causa e até aceita. O que falta a Saulo é ser antiherói. Além do bem e do mal.
    Já o texto prefiro dizer que ponha palavras como pedra ou faca ou maçã, palavras concretas, são bem mais forte e indigestas do que os usuais deslizes de sentimentalismo como triste, melancolia ou saudade.
    O texto deve possuir um força como um soco no estômago do que a carícia de uma mão. Deve possuir uma capacidade de afinal de sua leitura nos deixe tonto ou com naúseas do que um suspiro impuro do romantismo.
    Saulo depende de você...Você o criou e mimou desse jeito.

    ResponderExcluir

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...