sábado, 22 de janeiro de 2011

O Contemplador das águas

                                   
O cheiro da terra quando a chuva toca sua face emana tanta poesia. São poemas cravados na mente e que a memória insiste em mantê-los vivos.
Sou inundado de lembranças simplesmente quando ouço o barulho da água escorrendo pelo telhado de minha casa.Tenho o desejo de prendê-las para sempre em algum baú atemporal.
Certa ocasião fui surpreendido com o deslumbramento do meu sobrinho observando os pingos da chuva se despencando dos céus. Ele estava fascinado com o evento.Parecia hipnotizado, e neste transe, fui inspirado a fazer a mesma coisa.Sem que ninguém notasse retirei-me para a outra janela em busca do mesmo encantamento.
De vez em quando, ainda hoje, me pego repetindo o mesmo gesto quando sinto o tamborilar das águas.
O cinza que banha o mundo, os primeiros trovões, o corre-corre de donas de casas retirando as roupas do varal, algazarra de meninos seminus ansiosos pelo banho de bica...
É o tempo alterando o cotidiano e fincando suas marcas na alma do homem. Coisas, roupas úmidas, quarto escuro, livros, rede armada na sala, lençóis e travesseiros, filmes, contos, risadas, pipoca, chá quente, abraços apertados e o menino na janela contemplando as águas.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

A Porta de Alice

Uma porta que se abre quer dizer muita coisa. O ideal é que não seja escancarada. Se alguém resolver bater, abra aos pouquinhos. Veja até que ponto o espaço que é oferecido cabe a pessoa que entra.
Como na insólita situação em que Alice, a personagem de Lewis Carroll, precisa atravessar uma porta incrívelmente menor para o tamanho de sua pessoa.No clássico foi necessário tomar uma porção mágica para encolher.
Mesmo assim, digo que às vezes não cabe. Ou que fica estranho, quando há muito espaço e o visitante sente-se em “casa”.A melhor maneira para evitar constrangimentos seria manter uma sinalização.
Nada brusco nem agressivo.Apenas aponte até onde nosso convidado pode ir. Determine, gradativamente, até que horas da noite, por exemplo, ele pode te ligar. Lembre-se que você não quer perder a amizade, mas precisa dormir.
Adiante, em conversas informais, a hora em que você se recolhe. Não permita intervenções em sua rotina aceitando opiniões de como você deve fazer isto ou aquilo. Deixe claro que a intenção é manter seu espaço um local somente seu, com sua cara e que nada pode lhe roubar o direito de você, ser você mesmo.
Talvez isto pareça um tanto chato ou antissocial, mas eu acredito que é uma oportunidade para o aprendizado em que ambos conhecerão mais profundamente a característica de cada um.
Se seu amigo entender este princípio a relação ficará melhor, porém se ele não compreender, o risco dele não mais visitá-lo será grande.
Neste caso, é bom saber que na verdade não havia amizade, e sim uma interação morna e superficial. Não fique triste. Você saiu ganhando.
Existem inúmeras maneiras pra se manter a porta aberta. Mas saber o exato momento para fechar exige sabedoria e prudência.
O que não vale é jogar a chave fora.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Conto #1: Uma vela para Saulo.


Sua biblioteca não impressiona.É pequeno o número de exemplares.Boa parte são aquisições de sebos e a outra... Bem, a outra, são resultados de pequenos furtos.
Essa idéia de afanar livros de livrarias, bancas de revistas, bibliotecas públicas ou privada nunca lhe provocou remorso algum, e na verdade proporcionaram até certo contentamento. Ele acha que quem não pode comprar um livro deve subtrair.
Todas as tardes é fácil encontrá-lo sentado em sua calçada devorando algum novo volume. Seu prazer é inconfundível. Quando a noite se aproxima retira os óculos, fecha o livro, recolhe a cadeira.
Vez ou outra se queixa da escuridão. Não do breu de sua casa pela ausência de energia elétrica,pois neste mês não tinha pagado a conta, mas de sua visão que aos poucos lhe abandonava. O olho direito está cego. O esquerdo já está falhando. O oftalmologista adiantou que não demoraria muito tempo para que toda sua visão estivesse perdida devido a gravidade do caso. Coisa de hereditariedade não tem como evitar, apenas se resigna.
Ao deitar-se folheia o livro de cabeceira, cochila, e vencido pelo sono, adormece. Depois da aposentadoria por tempo de serviço no magistério quase nada restou da sua antiga rotina, apenas o cotidiano solitário. A mãe já não existe. O pai nunca foi presente. Os irmãos sempre distantes, longínquos... Esquecidos.
Numa destas noites, abraçado ao um dos livros do João Cabral de Melo Neto em sua cama, a vela, fiel companheira das leituras noturnas, tombou do lado e se apagou. Ele continuou parado, olhando para o nada concentrado nas trevas do seu quarto. E assim permaneceu bom tempo, como se fosse um exercício pra cegueira iminente: “Eu não vou suportar” _ deixou escapar pela fresta dos lábios o receio.
No dia seguinte ao se levantar o quarto permanecia no escuro. Numa escuridão aterradora, tão nefasta de um modo que sua segurança ficou abalada. Tateando, buscou encontrar a porta. A porta parecia que não mais existia. Onde estava a escrivaninha com os livros? Os chinelos, o calção, seu armário, os óculos, o livro da noite anterior, onde estavam?
Apavorado, procurou a parede para se encostar e tentar decifrar o enigma do sumiço das mãos. Por que podia somente senti-las?
Então, Saulo chorou.Mas suas lágrimas não lhes trouxeram de volta a visão.
E lá ficou ele, diante do abismo frio e inexorável das vicissitudes da vida. Vendo tudo e não enxergando mais nada.
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